A PALAVRA E A PEDRA


LOGOS E LITHOS:

A PALAVRA CRIADORA E A PEDRA ANGULAR
 

ANTÓNIO DE MACEDO

 

 


 

Quando, pela Alquimia Espiritual, nos tornarmos como Cristo, o Senhor da Vida, seremos imortais, libertar-nos-emos do nosso pai Samael e da nossa mãe Eva e a morte não mais terá poder sobre nós.

Max Heindel, Freemasonry and Catholicism, 1919

 
 

Li na primeira versão programática deste colóquio que o tema da «Palavra Perdida», sobre o qual gostaria de alinhar aqui alguns alvitres, deveria ser tratado, de preferência, segundo uma óptica específica, nomeadamente literária e apontando para bibliotecas e colecções de textos esotéricos. Vou fazê-lo tendo em vista, sempre que possível, uma das mais antigas e reputadas colecções literárias de textos esotéricos: a Bíblia.

Isto poderá parecer insólito porque a Bíblia é um livro sagrado — ou melhor, uma colecção de livros sagrados —, pelo menos para a nossa civilização ocidental, mas independentemente do facto de menos de um terço da população do planeta Terra assim a considerar, não deixa de ser verdade que a Bíblia contém e inclui uma vasta amostragem de textos e géneros literários, como por exemplo crónicas, listas de provérbios, conselhos e apotegmas, além de hinos, poemas, biografias, códigos jurídicos, cânticos, cartas, profecias, salmos, evangelhos, textos apocalípticos, etc. Por outro lado, afirmar que uma tão extraordinária colecção de textos inclui também textos esotéricos (ou que muitos dos atrás citados o são, a uma sétima leitura…) não deve surpreender-nos, pois na verdade uma vasta maioria desses textos, na Bíblia, são Rituais de Iniciação de vetustas Escolas de Mistérios, ou pelo menos fragmentos de antigas Instruções Iniciáticas…

Mas não pretendo alongar-me agora sobre este desvio, que daria para outro colóquio, e entro já na matéria que hoje aqui nos reúne.

Antes de falarmos em palavras e em pedras, perdidas ou achadas, comecemos pelos pensamentos, que estão na origem de tudo.

Diz-nos a antiga sabedoria que se pensarmos sempre com rectidão, agiremos sempre com rectidão.

Quem tenha pensamentos de amor para com os seus semelhantes, ou pensamentos de ajuda espiritual, mental ou física, não poderá tê-los sem deixar de exprimir na prática esses pensamentos. Se cultivarmos tais pensamentos em breve veremos o Sol radiar à nossa volta, e descobriremos que as pessoas virão ter connosco com o mesmo espírito e as mesmas ondas que lhes enviamos, de acordo com o ditado: «Dá ao mundo o melhor de ti mesmo, e o que o mundo tem de melhor ser-te-á retribuído», ou, segundo uma outra visão menos optimista: «Sorri e o mundo sorri contigo, chora e o mundo volta-te as costas».

Felizmente, como observa Max Heindel (1865-1919) no seu livro Teachings of an Initiate (7.ª ed. 1987), «os bons pensamentos são mais poderosos que os maus porque estão em harmonia com o rumo da evolução, e dia virá em que seremos capazes de controlá-los positivamente para ajudar a estabelecer no mundo uma paz estável e duradoura».

Tal como sucede com os pensamentos, o mesmo ou mais ainda se aplica às palavras :

«Antes de falar sou senhor das palavras, mas depois que as pronuncio torno-me escravo delas».

A palavra é em si mesma um poder.

A ideia de «palavra de poder» é muito antiga e encontramo-la em diversas tradições, a começar pela clássica egípcia: o papiro de Nesi-Amsu — talvez 3.000 anos antes de Cristo — relata uma história da Criação em que, antes que o mundo e tudo quanto nele se contém começasse a existir, existia apenas o deus Neb-er-tcher («Senhor de Todas as Coisas») — pois nem os outros deuses existiam —, e no momento apropriado Neb-er-tcher proferiu as seguintes palavras criativas:

«Configurei a minha boca e pronunciei o meu próprio nome como uma Palavra de Poder e expandi-me em quanto evolução de Khepera [“Criador dos Deuses”] e desenvolvi-me a partir da matéria primeva que produzirá multidões de evoluções desde o princípio dos tempos».

Para além dos conteúdos, o poder vibratório da palavra é muito forte e bom seria se tivéssemos disposição e tempo para pesar e medir cada palavra antes de a soltarmos por ares e ventos, sabe-se lá com que fastos ou nefastos resultados — como recomendava Cervantes num colorido diálogo entre D. Quixote e Sancho Pança por entre andanças cavaleirescas, citando um provérbio antigo: «Antes de falares, pensa sete vezes». O que, não sendo fácil na prática, pelo menos acautelaria humanamente os tremendos e muitas vezes incontroláveis poderes desse divino dom.

Pela boca do profeta Isaías, declara Jahvé:

Tal como a chuva e a neve caem do céu
e para lá não voltam sem ter regado a terra,
fertilizando-a e fazendo-a germinar
para dar o grão à semeadura e o pão a comer,
assim é com a Palavra que sai da minha boca:
não me regressará sem ter produzido efeito,
sem ter executado a minha vontade
e cumprido aquilo para que foi enviada. — Isaías 55, 10-11.

Sendo essa uma Palavra de vida, é, consequentemente, uma Palavra que cura — muitos a consideram uma Palavra perdida porque os homens não acertam maneira de a (re)encontrar, e na incansável busca desse tesouro, ou da solução desse enigma, se têm consumido durante séculos os mais diversos esquadrinhadores do oculto, afadigando-se infelizmente numa busca vã porque se extraviam por descaminhos em vez de buscarem a Palavra de Vida, com reverência e pureza de alma, na verdadeira Fonte: 

Clamaram a Jahvé na sua tribulação;
Ele salvou-os da aflição em que se encontravam.
Ele enviou a Sua Palavra e curou-os,
E salvou a vida deles da morte
. — Salmo 106 [107], 19-20.

Em grego, «palavra» diz-se logos — que Jerónimo traduziu na Vulgata Latina por verbum —, e a Palavra enviada por Jahvé é, evidentemente, o Cristo-Logos que foi enviado para nos curar e nos salvar da morte : tal Palavra portanto nunca esteve perdida, pelo contrário, basta estudarmos os Evangelhos com reverência e maravilhado amor, e praticá-los, para a conhecermos e dela nos beneficiarmos — se, por nosso sincero e assíduo esforço, de tanto nos revelarmos dignos.

A divina Palavra é poderosa, sem dúvida, basta a simples vibração do fiat lux para criar universos: 

No princípio era a Palavra [gr. logos],
e a Palavra estava junto de Deus,
ela estava, no princípio, com Deus;
tudo foi feito por ela,
e sem ela nada do que foi feito se fez. — João 1, 1-3.

Mas a palavra humana — reflexo da divina — não deixa de ter um poder considerável, também, à sua própria escala:

Alguma vez o leitor se deteve a considerar o maravilhoso poder da palavra humana? Voando até nós nas insinuantes tonalidades do amor [carnal], pode desviar-nos dos caminhos da rectidão e precipitar-nos na ignomínia ou arruinar-nos a vida com pungentes dores e remorsos, ou pode impulsionar-nos às mais nobres aspirações para alcançarmos honra e glória, aqui ou no além. De acordo com a inflexão da voz, uma palavra pode infundir terror no coração mais intrépido, ou fazer com que uma tímida criancinha se deixe embalar num sono tranquilo. A palavra dum agitador pode atiçar as paixões duma multidão e impeli-la a acções sangrentas, como na Revolução Francesa, em que, sob o mandato ditatorial duns quantos, a populaça matou e exilou a capricho, ou, inversamente, as doces palavras duma canção familiar podem reatar os laços numa família desavinda.

As palavras justas são verdadeiras e, por conseguinte, livres; nunca estão limitadas ou acorrentadas pelo espaço ou pelo tempo; chegam aos mais longínquos recantos da terra, e, mesmo quando os lábios que primeiro as pronunciaram já se desfizeram há muito no pó dos sepulcros, outras vozes espalharão com o mesmo entusiasmo a mesma mensagem de amor e vida, como por exemplo o místico poema Come unto me, cantado em inúmeras línguas e que tanto conforto tem proporcionado aos corações doloridos. Palavras de paz alcançaram vitórias onde a guerra teria significado uma derrota, e nenhum talento é mais desejável do que o de saber dizer a palavra certa no momento oportuno. (Max Heindel, The Rosicrucian Mysteries, 1911). 

A palavra, mesmo a aparentemente rudimentar e fruste palavra humana, tem uma força mágica, é dotada de energia, positiva ou negativa: a boa palavra pode curar, erguer o ânimo, inspirar, fortalecer, confortar, orientar, dissuadir do mal, persuadir ao bem, reconciliar, perdoar, fazer compreender, iluminar… Estas são autênticas palavras de sabedoria e amor, substância de oração, que abençoam não só aqueles a quem se dirigem, mas o próprio que as pronuncia.

«Como maçãs de ouro em bandeja de prata é a palavra dita a seu tempo» (Provérbios 25, 11).

Já a palavra falsa, negativa, injuriosa e desagregante acaba por falhar — ainda que muito estrago faça durante algum tempo — porque não é substância de oração, não tem existência em Deus.

Tudo quanto o ser humano investe no mundo repercute no lado invisível da vida, ficando depositado naquilo a que as doutrinas Rosacruzes chamam o «Banco Cósmico». É de suma importância o que se «envia lá para cima», em pensamentos, palavras e actos, pelo menos por três ordens de razões:

a) O que projectamos e emitimos acaba por nos retornar acrescidamente, como já observava o sábio árabe: «Senhor, fazei que as minhas palavras sejam de mel, porque sei que terei de engoli-las de volta». Do mesmo nos adverte o velho provérbio chinês: «O passado é um tigre que nos ataca pelas costas quando menos o esperamos». Também lemos na Bíblia: «A desgraça não deixará a casa daquele que retribui com o mal o bem que recebeu» (Provérbios 17, 13), ou, pelo prisma oposto: «Quem faz o bem ao pobre empresta a Jahvé, que lhe restituirá com juros» (Provérbios 19, 17);

b) Os nossos pensamentos, palavras, emoções, gestos, intenções, propósitos ou obras — incluso criações artísticas — que lançamos ao mundo e cuja essência «enviamos lá para cima» contribuem para melhorar ou piorar a qualidade vibratória, branca ou negra, da atmosfera psiconoética do planeta, influenciando outras pessoas (para além dos directos destinatários) que, sem se darem conta, dela se impregnam podendo ser impelidos a este ou àquele acto, para o bem ou para o mal;

c) Finalmente, são esses mesmos pensamentos, palavras, gestos, obras que vão construir o nosso futuro lar nos reinos invisíveis, após a morte.

Trata-se dum autêntico investimento no Banco Cósmico. Nada se perde do que pensamos, dizemos ou fazemos. O poeta e ensaísta Coleridge (1772-1834) afirmava: «Todos os pensamentos são, em si próprios, imperecíveis». 

Ora bem. Já falámos de pensamentos, palavras e actos; passemos finalmente à «pedra».

No seu Curso de Cristianismo Esotérico, vol. II, Lição 41, o instrutor rosacruciano Edmundo Teixeira (1922-1994) dá-nos o seguinte simbolismo alquímico:

Pedra é o fundamento espiritual. Moisés, com a vara do poder, feriu a ROCHA e dela tirou a Água da Verdade e da Vivência para orientar o seu povo, ou seja, para dessedentá-lo no deserto da esterilidade interna. Reclinando a cabeça sobre uma PEDRA, Jacob alcança o entendimento espiritual e vê uma escada que vai até aos céus, ou seja, vislumbra o esquema da Evolução. Na qualidade de Rei de Israel, David vê-se à frente de um exército mais numeroso chefiado pelo gigante Golias: é, simbolicamente, a personalidade (David) a defrontar os desafios da existência, aparentemente insuperáveis (Golias). Mas consegue vencer os Filisteus, os Filhos das trevas, que são os «eus» viciosos, os nossos únicos inimigos, quando atira com a funda uma PEDRA à testa do gigante. Golias é prostrado por terra e os adversários de David ficam desmoralizados, ou seja, a ilusão do mal é diluída. Por fim — mas não por último! — Cristo edifica a sua Igreja sobre a ROCHA personificada por Pedro. 

Esta associação de «pedra» e de «Pedro» é uma antiga tradição cristã que nem sempre tem sido examinada com a devida atenção. Debrucemo-nos um pouco mais sobre esta curiosa matéria. Aparentemente, aquele trocadilho ancestral (pedra/Pedro) estaria na origem da Igreja, e os seus partidários insistem que tal foi ensinado por Jesus e se encontra nos Evangelhos.

Não é totalmente verdade!

Se lermos os Evangelhos duma ponta à outra veremos que a palavra «Igreja», no sentido que hoje lhe damos, nem sequer neles é mencionada excepto por aproximação e apenas três vezes em dois versículos no Evangelho de Mateus (Mt 16, 18 e Mt 18, 17), pois a palavra grega original, usada por Mateus, ekklêsia, significa simplesmente «assembleia de convocados», neste caso a comunidade dos seguidores da doutrina de Jesus, ou a sua reunião num local, geralmente em casas particulares onde se liam as cartas e as mensagens dos apóstolos. Sabemo-lo pelo testemunho doutros textos do Novo Testamento, já que os Evangelhos a esse respeito são omissos. Veja-se por exemplo a epístola aos Romanos (16, 5) onde Paulo cita o agrupamento (ekklêsia) que se reunia na residência dum casal de tecelões, Aquila e Priscila, ou a epístola a Filémon (1, 2) onde o mesmo Paulo saúda a ekklêsia que se reunia em casa do dito Filémon; num dos casos, como lemos na epístola de Tiago (2, 2), essa congregação cristã é designada por «sinagoga». Nada disto tem a ver, portanto, com a imponente Igreja católica em quanto instituição formal estruturada e oficializada sobretudo a partir do século iv.

As Bíblias correntes costumam traduzir do seguinte modo o primeiro passo acima invocado de Mateus, em que Jesus diz a Simão Barjona: «Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja» (Mateus 16, 18).

Na verdade a versão deverá ser: «Tu és um rochedo [gr. petros], e sobre esta/essa rocha [gr. epi tautê tê petra] edificarei a minha comunidade [gr. ekklêsia]», e nesta forma original, mais simples (mas talvez mais misteriosa) do que a versão corriqueira, decorrente de posteriores formulações dogmáticas da Patrística, sobretudo latina, e dos concílios, dificilmente descortinamos a fundação do papado tal como a Igreja pretende. Vejamos porquê[1].

Aquela frase pode ter eventualmente dois significados, dependendo do sentido que se atribuir ao adjectivo demonstrativo tautê (dativo de autê, «esta» ou «essa»). Comecemos por esclarecer que em português, os pronomes e os adjectivos demonstrativos «este», «esse», «aquele» se correlacionam com os pronomes pessoais (maior ou menor grau de proximidade):

 

eu tenho este livro;
tu tens esse livro;
ele tem aquele livro.


 

  Outras línguas, como o grego ou o inglês, por exemplo, só apresentam duas formas distanciais: 

Grego
oûtos = este, esse
ekeînos = aquele

Inglês
this = este
that = esse, aquele


 

Ou seja, epi tautê tê petra pode traduzir-se «sobre essa rocha (pedra)» ou «sobre esta rocha (pedra)». Teremos então duas possíveis interpretações divergentes: 

A) «Tu és um rochedo, e sobre essa rocha[2], ou sobre essa pedra, edificarei a minha comunidade» — que poderá querer dizer, sem grande esforço e «modernizando» um tanto o sentido, algo como: «Tu, Simão, és um penedo, um autêntico calhau, mas como os humanos durante muitas gerações ainda serão tão calhaus como tu, não terei outro remédio senão edificar a minha futura comunidade sobre essa pedra, que Eu sei que me vai negar três vezes (na verdade, ao longo dos séculos, a Igreja de Roma saída de ti negar-Me-á muitas vezes mais do que três, com fausto, sede de poder, um papado e uma corte de cardeais atulhados em insultuosas riquezas, inquisições, intolerância, infraternidade, cupidez, perversão, torturas várias, ódios, guerras, repressões, tiranias, enfim, um autêntico rol de tudo quanto é mais contrário ao que Eu preguei)[3]; mas apesar disso, ainda é essa a maneira menos má e mais segura de transmitir exotericamente a Boa Nova a gerações e gerações de grandes massas ignorantes»[4]

B) «Tu és um rochedo, e sobre esta rocha edificarei a minha comunidade» — seguindo o mesmo raciocínio, pode-se interpretar assim: «Tu, Simão, és um penedo, um autêntico calhau, ainda por cima me vais negar três vezes, e como tal não podes servir de alicerce a uma futura comunidade que siga verdadeiramente os Meus ensinamentos mais puros, ou melhor, esotéricos, logo, sobre esta rocha, ou seja, sobre Mim mesmo, a pedra angular que os maus construtores rejeitaram, é que vou edificar a minha futura comunidade, baseada no Amor, na Verdade e na Vida — e quem melhor do que o Meu Discípulo Muito Amado, João, poderá servir de facho e guia, o discípulo capaz de receber e transmitir o Evangelho do Amor, cujos mais finos ensinamentos os empedernidos como tu, Simão, hão-de perseguir e tentar eliminar ao longo dos séculos?» 

Ambas estas alternativas são verdadeiras, exotérica e esotericamente, e correspondem aos factos da História.

A segunda alternativa, por exemplo, é defendida por alguns sérios exegetas que consideram que «esta pedra» sobre a qual Jesus construirá a Sua ekklêsia é o próprio Jesus, segundo Ele mesmo o diz mais adiante: «Nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular; isto aconteceu por obra do Senhor, e é admirável aos nossos olhos?» (Mateus 21, 42)[5]. O próprio Simão (Pedro) o confirma, já depois da Ressurreição e Ascensão de Cristo, no discurso que proferiu no Sinédrio: «[Jesus Cristo, o Nazoreu] é a pedra rejeitada por vós outros, construtores, que se tornou pedra angular» (Actos 4, 11), e Paulo enuncia claramente que Cristo é a «pedra espiritual» (1 Coríntios 10, 4). Daí a capital importância, para o aspirante à Senda do Espírito, de «imitar Cristo» para que Cristo nasça e se forme nele: «E vós mesmos, como pedras vivas [gr. lithoi zôntes], entrai na construção dum edifício espiritual, para um sacerdócio santo» (1 Pedro 2, 5).

Mais ainda: em continuação daquela frase dita a Simão Barjona, Jesus acrescenta: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus» (Mateus 16, 19), o que deu azo à estranha doutrina de que Deus obedece ao papa[6].

Mas a verdade é que Jesus não limita apenas a Simão (Pedro) a faculdade de se lhe repercutir «no céu» o que atar ou desatar «na terra», pois alguns dias mais tarde, falando aos Seus discípulos em Cafarnaúm, repetiu, desta vez para todos: «Em verdade vos digo, o que ligardes na terra será ligado nos céus, e o que desligardes na terra será desligado nos céus» (Mateus 18, 18).

É um ensinamento importante, este de Jesus aos Seus discípulos: tudo quanto se ata ou desata cá em baixo, tudo quanto se tece ou destece — e não só pelas mãos de Pedro, ou do papa! —, projecta-se para o alto e tem um efeito análogo nos reinos supra-sensíveis e por conseguinte no Banco Cósmico, além de que vai construindo — ou desfazendo — a nossa futura morada «nos céus».

O rochedo, ou a pedra, da personalidade material não-redimida é simbolizada pela fase histórica da Lei, que foi dada a Moisés em tábuas de pedra, sendo portanto inferior, em mistério, à «pedra angular» ou «pedra espiritual»: a do segredo crístico. Tal fase — a da personalidade — só terá acesso ao Reino dos Céus a partir da superior individualidade espiritual, ou seja, a partir do «homem interno» de Paulo (2 Coríntios 4, 16), ou do «Cristo em formação» no ser humano (Gálatas 4, 18-19). Mesmo interpretando, como o faz a Igreja, que «sobre essa pedra» se refere a Pedro (símbolo da persona mundana) e não ao próprio Jesus, continua a fazer sentido que Cristo tenha descido até nós porque sabia que é neste mundo onde a pedra da personalidade impera que a Sua comunidade tem de ser erigida, em sofrimento, para o combate evolutivo indispensável até que nos seja possível atingir a «perfeição do Pai». Por isso ao dizer: «sobre essa pedra construirei a minha comunidade» estaria a referir-se, neste caso, à pedra personalística que O «negou três vezes», tal como a mesma Igreja o tem negado tantas através dos séculos, e provavelmente negará, antes que a divina compreensão unifique todos os homens e mulheres em puro Amor universal.

Por seu turno, a redenção que se alcança através da individualidade espiritual é a autêntica chave do Reino dos Céus, que sabemos encontrar-se no nosso ser pela revelação que Jesus nos faz por intermédio do místico Evangelho de Lucas: «Olhai que o Reino de Deus está dentro de vós» (Lucas 17, 21). É o diamante oculto no interior da pedra bruta — a Sétima Morada da alma, de Santa Teresa de Jesus, a mais íntima e a mais divina[7] —: o diamante só brilhará em todo o seu esplendor após se aplicar à pétrea crosta, onde se oculta, o esmeril para desbastá-la, o esmeril que faz a «pedra» chiar com a violência do desgaste, ou seja, gemer com as dores e com o sofrimento de andar (andarmos!) no mundo e no aprendizado da vida, até que, pelo exercício da Gnosis e pela graça da Sophia sejamos dignos de alcançar a redenção e a paz, «a paz de Deus que excede todo o entendimento», como nos ensina Paulo (Filipenses 4, 7) e nos confirma um dos seus discípulos:

«… a fim de conhecerem o mistério de Deus, isto é, Cristo, no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria [gr. sophia] e do conhecimento [gr. gnôsis]» (Colossenses 2, 3)[8].António de Macedo

 


 

[1] O outro passo onde a Igreja costuma fundamentar o primado de Pedro como «pastor» máximo da Igreja é João 21, 15-17, em que Jesus diz a Pedro, ou melhor, a Simão filho de João, por três vezes: «Apascenta as minhas ovelhas». Convém referir todavia que esta tripla injunção vem na consequência de Jesus lhe ter perguntado, também por três vezes: «Tu amas-me?» — remetendo para o triplo amor divino já expresso no Deuteronómio (6,5) e repetido em Mateus (22, 37): amar com todo o entendimento (natureza mental), com todo o coração (natureza emocional), com todas as forças (natureza físico-etérica). Com isto, o autor deste Evangelho espiritualiza a rocha da personalidade, que Pedro simboliza, purificando-a e elevando-a pelo amor. É uma instrução iniciática, e não um acto de fundação institucional duma organização como a Igreja. Por outro lado, este último capítulo de João, 21, foi acrescentado posteriormente, e embora sérios exegetas acreditem, pela crítica interna, que seja do mesmo autor do restante Evangelho, ou dalgum discípulo bom conhecedor do seu estilo, não é de excluir que o acrescento tenha sido redigido quando a Igreja já havia institucionalizado o «primado papal» de Pedro, que assim se veria reforçado com este pequeno episódio.

[2] As palavras gregas petros e petra traduzem um original aramaico kepha, que significa rocha, rochedo. Cf.: «Tu és Simão, filho de João, e te chamarás Kepha» (João 1, 42). — Alguns exegetas entendem que este «Kepha», aqui, não significa «pedra», mas seria uma adaptação do aramaico qayyepha (Caifás) correspondente a um título, qualquer coisa como «inquiridor/prognosticador», e que nos Evangelhos é considerado como nome do sumo sacerdote que presidiu ao julgamento de Jesus. Os meus modestos recursos não me permitem tomar partido nestas querelas de eruditos…

[3] O episódio em que Pedro nega Jesus três vezes, declarando que não é Seu discípulo nem tem nada a ver com Ele, após Jesus ter sido preso no Gethsemani, vem relatado nos quatro Evangelhos: Mateus 26, 69-75; Marcos 14, 66-72; Lucas 22, 54-62; João 18, 15-18.24-27.

[4] É a confirmação de Pedro como «pescador de homens» (Lucas 5, 10), pese embora as suas imperfeições: pois não somos todos imperfeitos, antes que possamos alcançar a «perfeição do Pai»? Esta esperança é-nos repetida no passo do Evangelho de João onde se refere a pesca milagrosa de Pedro após a Ressurreição de Cristo: Simão Pedro subiu à barca e puxou a rede, e trouxe-a cheia com 153 peixes (João 21, 11). Por sua vez o Apocalipse informa-nos que são 144 mil os eleitos de Deus assinalados, e que serão salvos das catástrofes que sobrevirão quando for aberto o Sexto Selo (Apocalipse 7, 3-4). Tanto 153 como 144.000 se resolvem cabalisticamente em 9 (1+5+3=9 e 1+4+4=9), e 9 é o número de Adão, ou da humanidade: as três letras hebraicas que formam a palavra «Adão», aleph, daleth e mem têm os valores numéricos 1, 4 e 40, respectivamente, o que soma: 1+4+40=45, que por sua vez se resolve em: 4+5=9. Admitindo que o que se dissimulava nos sistemas numéricos hebraico e grego se tornou transparente quando o homem foi iluminado com o sistema decimal, eis uma antiga e oculta mensagem endereçada (por que não?) à idade moderna, e que nos afirma: Deus quer que TODOS sejam salvos.

[5] Inspira-se no Salmo 117 [118], 23-24:

A pedra que os construtores rejeitaram
Tornou-se pedra angular;
Isto foi obra de Jahvé,
E os nossos olhos maravilham-se.

[6] O episódio da alegórica paragem do Sol e da Lua, a mando de Josué, tal como é narrada no Antigo Testamento, pode levar apressadamente a concluir que Deus «obedece» ao papa tal como então «obedeceu» a Josué e parou o Sol: «Não houve, nem antes nem depois, um dia como aquele, em que Jahvé tenha obedecido à voz dum ser humano, porque Jahvé combatia por Israel» (Josué 10, 14). — No entanto, o facto de a Bíblia dizer «nem antes nem depois» parece anular explicitamente aquela papal pretensão.

[7] Cf. Santa Teresa de Jesus, «Moradas ou Castelo Interior» (1577), in Obras Completas, Edições Carmelo, Aveiro 1978.

[8] O estudo atento da carta ao Colossenses e da carta aos Efésios, inseridas no corpus paulino do Novo Testamento, levou os especialistas a concluírem que são textos compósitos, eventualmente de Paulo na sua origem, mas com importantes acrescentos e desenvolvimentos (redigidos por um ou vários discípulos «paulinistas») que só se justificam em face de situações e concepções surgidas já no século ii d. C.

 

Conferência proferida no III Colóquio Internacional "Discursos e Práticas Alquímicas", organizado pelo Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) e pelo Centro Interdisciplinar de Ciência, Tecnologia e Sociedade da Universidade de Lisboa (CICTSUL), no Instituto Rocha Cabral, Lisboa, emJunho 2001
 

 
A Pedra Filosofal por JAKnaap

Da obra "The Secret Teachings of All Ages", de Manly P. Hall, The Philosophical Research Society



 

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