Instruções Iniciáticas |
“O Retorno do filho pródigo”, Rembrandt van Rijn (1606-1669)
36. Regresso ao Pai de Amor
António de Macedo
Eis-nos chegados ao termo (provisório) do nosso peregrinar, quais cavaleiros-monges errando por vales e cerros, prados e matagais, em busca da silenciosa vereda que nos levará ao Monte Abiegno. Muito ficou por inquirir, nem será preciso dizê-lo, por exemplo o estimulador confronto entre ressurreição e reencarnação, ou o que se deve entender por fogo eterno do inferno, ou o enigma do Santo Sudário, ou ainda o iluminante segredo dos Dois Sermões de Cristo Jesus, o Sermão da Montanha e o Sermão da Ceia… mas estas e tantas outras coisas talvez façam parte de um outro livro, enfim, se a Deus prouver e o alento não me faltar.
Escrevo isto nos finais do século xx que é o mesmo que dizer, nos finais do segundo milénio, perturbante fronteira, ou trincheira, duma interminável guerra entre o passado e o futuro, entre a tentação do balanço do que herdámos e o temerário impulso de profetizar as visões que desejamos… Que é um século, ou um milénio, perante a imensidão da consciência, e falo agora de toda a consciência, quer humana quer macrocósmica, mistério final e tão transcendente que nenhuma ciência até hoje soube definir? Tal como canta o Salmista: «Porque mil anos, Senhor, são para ti como o dia de ontem que já passou» (Sl 89 [90], 4), ou como diz a segunda epístola atribuída ao apóstolo Pedro: «Um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia» (2 Ped 3, 8).
Mas por que havemos de surpreender-nos? Cristo não disse «vós sois deuses»? E Paulo não repete que somos o Templo do Espírito de Deus? E que «n’Ele vivemos, nos movemos e somos» (Act 17, 28)? E se Cristo está em nós — «… Cristo em vós, a esperança da glória…» (Col 1, 28) —, pois tal não é um glorioso aval que nos credibiliza divinos? Porquê então a recusa de Deus por parte dalguns de nós, os ateus, por exemplo, que é o mesmo que se rejeitarem no que têm de mais essencial e mais sagrado, e de mais livre, ou, no extremo oposto, o temor a Deus, ou mesmo terror, e correlativo servilismo para com Aquele que antes de mais nada é um Pai de Amor e um Pai misericordioso?
«Porque não recebestes espírito de escravidão para cair de novo no temor, antes recebestes um espírito de adopção filial, com o qual chamamos: Abba (Paizinho). É o próprio Espírito que atesta, em unísono com o nosso espírito, que somos filhos de Deus» (Rm 8, 15-16).
Falei na recusa de Deus, que é a posição normal dos descrentes: não só não acreditam que Deus exista mas vão mais longe, talvez em muitos casos nem se dêem conta disso: recusam-no, porque sentem que um Deus que se não mostra claramente, que alimenta tantas incertezas em tanta gente ao logo de tantos séculos, não pode ser um Deus de bondade. Se fosse verdadeiramente bondoso, aparecia-nos! Com efeito, raciocinam os ateus, se Deus existe, então por que se não mostra em toda a sua esplendorosa Omnipotência, envolto numa parafernália de trovões, relâmpagos e outros efeitos especiais, acabando duma vez por todas com a descrença dos que descrêem? Tal como se queixa o «pagão» Alberto Caeiro:
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou![1]
Bem, Deus nunca faria isto, nunca entraria pela porta dentro de ninguém sem pedir licença, porque Ele respeita a nossa liberdade, incluso a liberdade de não acreditarmos n’Ele: «Eis que estou à porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele e ele comigo» (Ap 3, 20).
O teólogo François Brune conta a este propósito uma bonita história, variante de «la Belle et la Bête», que peço licença para aqui contar também[2].
Vivia nas brenhas dum certo país medieval uma rapariga feia e com muito mau feitio, muito agressiva e de maus costumes, que morava numa choça imunda e de quem todos se afastavam. Por uma estranha aberração do destino, o belo príncipe, filho único e bem-amado do poderoso rei daquele país, pretendido pelas mais formosas princesas dos reinos vizinhos, passou pelas tais brenhas, viu a desgraçada e apaixonou-se perdidamente. Apaixonou-se a tal ponto, com um amor tão louco e abrasador, que não conseguia dormir noite e dia. Pensou consigo mesmo:
— Como hei-de fazer para lhe conquistar o coração? Se lhe apareço numa esplêndida carruagem dourada, com os meus pagens e lacaios, vestido de brocado e ouro, e deponho a coroa e o meu coração a seus pés, decerto que ela, só para apanhar a coroa e tudo quanto lhe possa oferecer, aceitará desposar-me, mas… amar-me-á deveras?, por mim e não pelas minhas riquezas?
E o príncipe renunciou ao seu projecto.
Um dia a pobre rapariga, varrendo à porta da choça, viu aproximar-se um mendigo coberto de andrajos, tão miserável e feio que ela se assustou, e, fazendo jus à agressividade e ao mau feitio que tinha, escorraçou-o à vassourada. No dia seguinte o mendigo voltou, mantendo-se à distância, discreto e humilde. Passou a vir todos os dias, retirando-se sempre que pressentia que a estava a importunar.
Um dia aproximou-se tanto que ela pôde olhá-lo de perto, e viu que tinha uns olhos meigos e bonitos. Dia após dia foi deixando que se aproximasse mais, e acabou por fazer uma descoberta estranha: ele era um mendigo, sim, mas um mendigo de amor. Bem podia ela escorraçá-lo, que ele sempre vinha e ali ficava — sem pedir nada. E então a desgraçada rapariga começou a adivinhar o grande amor com que era amada, e a desejar ser capaz, no seu coração, dum amor assim tão grande… mas o mendigo era tão pobre, e tão feio! A pouco e pouco foi vencendo a repugnância que ele lhe inspirava, ser amada daquela maneira começou a torná-la feliz, duma felicidade indizível, e um dia descobriu que o amava também, pelo amor do seu amor! E aceitou-o.
Está-se mesmo a ver o final da história: o mendigo, então, deixa cair os andrajos e não é outro senão o tal príncipe esbelto e formoso, quebra-se o feitiço e a desgraçada e suja rapariga transforma-se na mais bela princesa de todo o reino…
No fundo, fora ela que se salvara a si mesma com o milagre do amor, mas, para que isso pudesse acontecer, foi preciso que o príncipe — Deus? — não começasse por lhe aparecer em toda a glória, e se mantivesse discreto, para que a Humanidade, também — agressiva e de maus costumes? —, acabe por revelar a luminosa beleza do latente amor que encerra em si, ansioso por florir, e que se obstina em ignorar e recalcar.
Não é o rastejar de escravo prostrado a Seus pés que Deus pretende. Talvez não seja essa a concepção de divindade que têm ou tiveram outros povos, ou certas seitas cristãs, mas o Deus que Cristo nos revelou quer outra coisa, deseja-nos filhos bem-amados, não serventes:
Ah, mas o Deus cristão é um Deus bem estranho. Não está interessado na nossa obediência, nem se satisfaz com ela. Quem criou centenas de milhões de galáxias não tem necessidade dumas miríades de larvas subservientes. Não: a exigência de Deus, ou antes a sua expectativa, vai muito mais longe: Ele quer ser amado![3]
Mas, ai de nós!, o Ocidente cristão ainda não sabe ser verdadeiramente crístico! E a mística cristã do Amor é tão bela, e tão admirável! Quanto a isto, temos de reconhecer, o Oriente ainda não perdeu de todo uma visão iluminada que o nosso Ocidente profano, embrenhado em materialismo, se tem esforçado por suprimir e deslembrar. Se aqui no Ocidente alguém for por aí dizendo «Eu sou Deus» pegam nele e metem-no no manicómio. Se no Oriente hinduísta, por exemplo, alguém for pelas ruas exclamando «Eu sou Deus!» felicitam-no porque foi iluminado e descobriu a sua verdadeira identificação.
E essa natureza, a mais íntima, é a essência do Amor. «Nós amamos, porque Ele nos amou primeiro» (1 Jo 4, 19).
Num arrebatamento espiritual, Santa Teresa de Jesus ouviu o seguinte, sem ver quem o dizia: «… Todo o dano que vem ao mundo é de não se conhecerem as verdades da Escritura com clara verdade, da qual não ficará um til por cumprir». Conheceu Santa Teresa que era a mesma Verdade quem tal dizia, e estranhou-se, pois sempre lhe parecera que todos os fiéis criam e sabiam isso. Tornou-lhe porém a Voz: «Filha minha, quão poucos Me amam com verdade! Se Me amassem, não lhes encobriria Eu os meus segredos. Sabes o que é amar-Me com verdade? É compreender que tudo quanto Me não é agradável a Mim — é mentira»[4].
«Se Me amassem, não lhes encobriria Eu os meus segredos…» O verdadeiro Amor a Deus é uma Iniciação, e por sabê-lo, é que Jesus não podia revelar os segredos aos homens comuns, incapazes de tanto Amor, e revelava-os à parte aos discípulos. «Deus é amor, e quem permanece no amor permanece em Deus, e Deus permanece nele» (1 Jo 4, 16). A Igreja, com a sua obstinação em se agarrar à letra, esquecendo a conhecida advertência de Paulo, muitas vezes materializou as maravilhosas verdades esotéricas e iniciáticas que os Evangelhos contêm — e que felizmente as Escolas de Mistérios preservam, e nos ensinam e desvendam —, transformou em coisa física o que é místico e cósmico — por exemplo, o fogo do inferno —, e permitiu que em nome dum Deus implacável e imperdoador se dessem largas a tanta crueldade e intolerância ao longo dos séculos, até culminar, por previsível reacção, no lamentável materialismo filosófico e científico em que estrebuchamos hoje em dia.
E no entanto… se lermos com atenção a parábola do trigo e do joio, por exemplo, relatada no Evangelho de Mateus (Mt 13, 24-30; 36-43), uma das tais cujo simbolismo Jesus explicou à parte aos Seus discípulos, notaremos o cuidado que o Senhor do Reino dos Céus pôs em observar o «tempo de espera»[5]: quando os servos do dono do campo queriam arrancar o joio que crescera misturado com o trigo, o senhor respondeu-lhes: «Não, não suceda que ao apanhardes o joio, arranqueis juntamente o trigo. Deixai crescer ambos até à ceifa, e na altura da ceifa direi aos ceifeiros: Apanhai primeiro o joio e atai-o em feixes para ser queimado, porém o trigo recolhei-o no meu celeiro» (Mt 13, 29-30). Deus não extermina ninguém por ser «joio», e muito menos prematuramente, ao contrário do que fizeram certos fanáticos tantas vezes ao longo da história, como nos dá conta o trágico episódio da tomada de Béziers em 1209, durante a cruzada contra os albigenses promovida por Inocêncio III: o cisterciense alemão Cesário, cronista da abadia de Heisterbach e que escreveu quinze anos depois, relata que tendo o exército perguntado ao legado papal, Arnaud Amaury, como se havia de fazer para distinguir, na multidão dos vencidos, entre os bons e os maus, aquele respondeu: «Matai-os a todos, Deus reconhecerá os seus». E assim se fez.
A evolução é um plano divino a longo prazo; um homem-joio pode tornar-se em homem-trigo pela espiritual Alquimia da transmutação do mal em bem, que já sabemos ser uma lei divina: o Amor é a lei de coalizão universal — e se o Espírito em nós habita como nos afirmam as Escrituras, seremos perfeitos como o nosso Pai celestial é perfeito. O homem-joio, ao ser queimado pelo fogo da consciência, que é o que mais queima, no cadinho (crucibulum) da provação, acabará por revelar o ouro que na escória se esconde, a escória que ele transitoriamente é.
Até os escribas conheciam que a lei do Amor é a primordial! Lemos no Evangelho de Marcos que um escriba, ouvindo Jesus falar e expor a Sua doutrina, disse-lhe: «Muito bem, Mestre, com verdade disseste que Ele é único e não há outro fora d’Ele, e amá-lo com todo o coração e com toda a inteligência e com toda a força, e amar ao próximo como a si mesmo, vale mais que todos os holocaustos e todos os sacrifícios» (Mc 12, 32-33). Já o profeta Oseias, no AT, o dizia:
Porque o amor fiel é o que me agrada, não os sacrifícios;
E o conhecimento de Deus, não os holocaustos. — Os 6, 6.
Versículo que Jesus cita e resume ao responder aos que o criticavam por conviver com publicanos e pecadores: «Não são os saudáveis que precisam de médico, mas os doentes. Ide e aprendei o que significa: Misericórdia quero, não o sacrifício. Porque não vim chamar os justos, mas os pecadores [gr. ‘amartôlous, «os que erram», «os culpados»]» (Mt 9, 12-13).
Este Pai misericordioso que Jesus nos veio revelar, ansioso pelo nosso amor, é perfeitamente caracterizado na parábola do Filho pródigo, que nos é contada iniciaticamente no Evangelho de Lucas (Lc 15, 11-32), que já sabemos pertencer a uma Escola de Mistérios mística e devocional. Esta parábola é uma chave, e contém diversas instruções relevantes. Por exemplo: dos dois filhos, um fica em casa e outro parte à aventura para uma terra longínqua, delapidando os seus bens. Tal como o Abel e o Caim do Génesis: Abel quedou-se estático na pastorícia, e, naturalmente, não evoluiu e acabou por ser morto, ao passo que Caim se aventurou na agricultura e na pesquisa de novas combinações de sementes, sendo progenitor de artífices e criando uma civilização férrea e marcial que, se por um lado permite conquistar a matéria e evoluir, por outro corre o grave risco de sucumbir ao peso da mesma matéria, e, se não se arrepende, isto é, se não faz a metanoia, ou a transmutação mental e espiritual, não terá outro remédio senão passar pelas piores privações e ter de comer «as alfarrobas que os porcos comiam» (Lc 15, 16), tal como o filho pródigo no país distante e rigoroso aonde se aventurou. É evidente que a comida dos porcos, ou a satisfação grosseira dos vícios materiais, não alimenta o verdadeiro homem espiritual, cuja natural aspiração é regressar à «Casa do Pai».
Os Padres Gregos já haviam notado há muito tempo que o grande texto correspondente ao Génesis, nos Evangelhos, era a parábola do Filho pródigo a que eles aliás preferem chamar, não sem razão, «parábola do Pai misericordioso». Ora o que lhes tinha chamado a atenção é que a narrativa se pode aplicar tanto ao conjunto da humanidade como a cada um de nós, como também a cada um dos nossos erros[6].
«Caindo em si» (Lc 15, 17), ou «entrando em si mesmo» como nos diz o texto original (gr. eis ‘eauton elthôn), o filho pródigo reconhece o erro e descobre o seu verdadeiro e luminoso ser, que não é o Eu personalístico egoísta e vicioso, e arrepende-se; o arrependimento diz-se em grego metanoia, que significa «mudança de mente». Quando chega ao lar o Pai recebe-o de braços abertos, em vez de o punir: recebe-o amorosamente — mas atenção!, tal só foi possível depois do filho ter feito a metanoia, abrindo a porta da alma e convidando, iluminado, Deus a entrar, como nos ensina o versículo do Apocalipse citado atrás: «Eis que estou à porta, e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele e ele comigo».
Recordemos a admirável oração do Pai Nosso, que Jesus nos ensinou no Sermão da Montanha: entre outras coisas, aí encontramos: «Liberta-nos das nossas dívidas [gr. opheilêmata], tal como libertamos os que nos devem» (Mt 6, 12). A Igreja católica, para tornar o conceito mais acessível ao homem comum, desmetaforizou a expressão «liberta-nos das nossas dívidas » em «perdoa-nos as nossas ofensas», o que, neste caso, vem a dar ao mesmo e talvez com mais clareza; aliás no Evangelho de Lucas, onde a mesma oração é registada, não se fala em «dívidas», mas em «erros» (gr. tas ‘amartias) — ou «pecados» no sentido teológico de desvios à Lei. Na sequência, Jesus adverte: «Porque se perdoardes aos homens [gr. tois anthrôpois] os seus maus passos [gr. paraptômata, «faltas», desvios»], também o vosso Pai celeste vos perdoará. Mas se não perdoardes aos homens os seus maus passos, também o vosso Pai não vos perdoará os vossos» (Mt 6, 14-15). Cerca de 180 ou 190 anos antes de Cristo, já um hebreu chamado Ben Sirach advertia o mesmo num livro que a tradição católica incluiu no AT:
Perdoa ao teu próximo as ofensas que recebeste,
E quando rezares, os teus pecados ser-te-ão perdoados. — Sir 28, 2.
Isto parece em contradição com o que temos vindo a dizer, acerca dum Deus-Pai todo-Amor e todo-Misericordioso… Afinal, este Pai celeste é um ser vingativo, pois se não perdoarmos aos outros procede connosco da mesma maneira: — Ah sim? não perdoaste? então também não te perdoo! — Já sabemos que não é assim. A instrução iniciática é clara: se não perdoarmos a quem nos ofendeu, «fechamos a porta», e o Pai, que respeita a nossa LIBERDADE, por muito que o Seu divino coração sangre, nada pode fazer: aguarda que façamos a metanoia, e que despertemos para a compreensão da nossa real natureza, divina, a fim de abrirmos as portas e as janelas da mente e do coração para que a Sua luz nos inunde e o nosso verdadeiro Eu se revele, e, iluminados e abençoados, nos elevemos natural e amorosamente até à compreensão de que Ele está sempre presente, e nunca nos abandona — nós é que O abandonamos… Alexis Carrel recomendava: «Reza, não para que Deus se lembre de ti, mas para que tu te lembres d’Ele!»
A dor de Deus, de se ver remoto de nós por nossa culpa, é infinitamente maior do que a nossa dor de nos encontrarmos apartados d’Ele, e tal se deve à nossa obstinada clausura num eu personalístico e egoísta que na verdade não somos nós, e que, quando nos advier o despertar espiritual, será queimado, ou purgado, por um fogo de consciência que queima dolorosamente, até que deixemos de recusar Deus e o Seu amor: meditemos no que diz Santa Clara, contemporânea e amiga pessoal de S. Francisco de Assis:
«O fogo do inferno é a luz divina tal como é sentida pelos que a recusam.»
Seguindo o exemplo de Paulo e de João que nos ensinam a miraculosa força da graça perdoadora, sabemos que essa energia perdoadora é o melhor alimento do Santo Graal, e que devemos eliminar do nosso íntimo todas as tentações retaliativas e vingativas que só irão proporcionar energias acrescidas ao Graal Negro. Mas não nos iludamos, não se trata de perdoar de qualquer maneira permitindo que o mal alastre na confiança da impunidade: o perdão não exime o ofensor de ter consciência do prejuízo que causou e de ser compelido à restituição: por exemplo prestando serviço a quem prejudicou, para redimir o mal que fez e repor o equilíbrio das acções e contra-acções do universo. O ofendido pode bem perdoar, e assim se desliga, mas o ofensor é que não fica perdoado a menos que ele próprio cumpra três condições: 1 — Sincero arrependimento; 2 — Restituição; e 3 — Reforma, ou firme propósito de mudar a vida, abandonando o culto da personalidade para se submeter à luz do Eu superior e deixar de continuar a transgredir as leis espirituais.
Trata-se, no fundo, de aprender a bem rezar, compreendendo a lição do Pai Nosso e tendo a clara consciência de que não devo rezar para mudar as pessoas e as coisas, ou pior, para mudar a vontade de Deus, mas para me saber amoldar à Sua — mudando-me a mim mesmo, com a graça divina, e tudo o que pedir, com fé, me será concedido.
Bom, eis-nos chegados ao fim do que por ora tenho para vos dizer, mas não gostaria de me despedir do heróico leitor que calorosamente me acompanhou nesta viagem sem lhe dar um resumo de tudo quanto tentei alinhavar, melhor ou pior, ai de mim, com a ajuda e a complacência de Deus e para algum amparo de quem busca, resumo que é uma das mais luzentes páginas de Philo-Sophia portuguesa:
A Alegria é a unidade concreta dum Universo: sociedade pronta e patente; é, pode dizer-se, a realidade do Ser planificada.
A Dor é a nova direcção da Unidade, quebrada em mil destroços, fragmentada e dispersa, buscando para além.
A Graça é, antes da Dor, o sorriso da Alegria; é, depois da Dor, a Unidade reconquistada boiando sobre os destroços, que, por ela, tomam um novo sentido de Alegria, um lúcido corpo de drama, um valor de revelo e exaltação.
A Alegria atinge-se, é a nossa realidade imediata e é também a nossa conquista.
A Graça é, no indivíduo, a presença dum infinito de qualidade, que tudo abrange e excede.
A Alegria é a vitória, em cada ser, do sentido de concreto universalismo sobre o abstracto individualismo.
A Graça é o próprio Universo que é presente, por dentro e em espírito, em cada parcela — átomo, mundo ou criatura.
A Alegria canta, a Dor procura e atende, a Graça é [7].
Concluo, enfim, com algumas recomendações que já têm sido reproduzidas de várias maneiras por diversos autores, antes de mim, mas que nunca é de mais relembrar:
· Se nas tuas orações pedires uma laranja e Deus te der um limão, não desesperes: faz uma limonada.
· Acautela a tua vida terrena como se fosses viver muitos anos; acautela a tua vida espiritual como se fosses morrer esta noite.
· Esforça-te como se tudo dependesse de ti; reza como se tudo dependesse de Deus.
· Agradece a Deus todos os dias mesmo que não saibas porquê; Ele sabe.
-----ooOoo-----
[1] Fernando Pessoa, «O Guardador de Rebanhos», V, in Obra Poética e em Prosa (ed. cit.), vol. I, p. 747.
[2] Relatada em: François Brune, Pour que l’homme devienne Dieu (ed. cit.), pp. 118-119 e em: Christ et karma (ed. cit.), pp. 180-181.
[3] François Brune, Christ et karma (ed. cit.), p. 179.
[4] Santa Teresa de Jesus, «Livro da Vida», XL, 1, in Obras Completas (ed. cit.), pp. 376-377.
[5] V. supra, p. 339, a propósito do simbolismo do número 40.
[6] François Brune, Christ et karma (ed. cit.), p. 170.
[7] Leonardo Coimbra, «A Alegria, a Dor e a Graça» (ed. cit.), pp. 184-185.
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